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OS JOVENS TAMBÉM TÊM OPINIÃO SOBRE OS ASSUNTOS DO DIA-A-DIA, DO PAÍS E DO MUNDO! ESTE É O BLOG ONDE ESSA OPINIÃO CONTA. DÁ-NOS A TUA. SER JOVEM É UM ESTADO DE ESPÍRITO (e segundo a lei é dos 14 aos 30 xD)

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

De pés descalços

De pés descalços se levanta ao inicio da manhã. Deambula pelos corredores da casa, chega à casa de banho e olha-se no espelho.


Um farrapo.


Pensa ela enquanto toca no cabelo despenteado e desajeitado, acrescentando caracóis aos imensos que lhe adornam a cabeça, procurando algum sinal de que tenha dormido, ao espelho, mas só encontra olheiras, o preto dos olhos um pouco borrado e aquilo que chamaria de a urgência imediata de ir para o banho.


Tira as alças da camisa de dormir que lhe desliza pelas ancas e lhe cai junto aos pés, pega numa toalha seca e pendura-a junto à banheira, abre a torneira da água quente e deixa correr um pouco enquanto esta não aquece, verifica o telemóvel sentada no tampo da sanita com uma perna dobrada ao mesmo nível, aproveitando para brincar com os dedos dos pés, e sobre a qual se debruça enquanto a outra se encontra apoiada no chão, sobre o tapete da casa de banho.


Uma mensagem do Gustavo? Mas quantas vezes tenho que lhe explicar que está tudo terminado? Não aguento mais isto.


Já se vê o vapor, da água a ferver, que sobe até ao tecto e é absorvido pelo ventilador, ela tenta desligar-se dos problemas do mundo exterior e pousa o telemóvel junto ao lavatório, despe as cuecas vermelho bordeaux que tinha vestido a noite passada e atira-as para junto da camisa de dormir que tivera despido há instantes e que estavam no mesmo sítio desde então. Entra na banheira e liga o chuveiro. Deixa a água quente queimar-lhe o corpo todo. Aquele calor, aquele sentimento de sair fora do seu próprio corpo e tornar-se ela própria na corrente de água que lhe passa pela pele e lhe lava a alma, tirando-lhe todos os pesadelos que sonhou á noite, fazendo-a esquecer de todos os problemas, elevando a sua mente a um nível superior de abstracção. Ela precisa disso. Verónica precisa de se abstrair dos problemas com o ex-namorado que a persegue para todo o sítio desde que terminaram; precisa de esquecer as contas que não param de aumentar; as tentativas de relacionamentos que têm falhado de há seis meses para cá por causa de Gustavo; precisa de esquecer a crise de criatividade no trabalho; os problemas com os pais que, apesar dos seus vinte e oito anos, continuam a querer meter-se em todas as suas decisões e a querer decidir a sua vida por ela.


Durante um banho a escaldar, quase a queimar a pele, dá para pensar esquecer isso tudo, massajar o corpo, relaxar pois é domingo e, apesar de se ter levantado cedo por não conseguir dormir mais, hoje não vai trabalhar. Mas também dá para pensar nisso tudo. E foi isso, esses pensamentos novamente, que lhe interrompem o prazer do banho e que a fazem sair de dentro da banheira, rodeada de vapor. Coloca uma toalha no cabelo e outra à volta do peito. Não se seca, deixa-se secar. Vai pelo corredor, vazio e apagado, frio e contrastante com o banho, entra na cozinha e abre a porta do frigorífico, tira um pacote de leite, serve-se num copo, encosta-se ao balcão da cozinha e olha pela janela do apartamento. Vê alguns pássaros nas poucas árvores da avenida onde mora, observa o trânsito calmo de uma manhã de Domingo que ainda não despertou como deve de ser e pensa nas voltas que a vida dá.


Ainda ontem era miúda, a querer entrar para a universidade, que adorava desenhar e como tal queria ser arquitecta, projectar quem sabe a sua casa de sonho e nela viver. Conhecer o príncipe dos seus sonhos, ter filhos, um ou quem sabe dois, um cão para passear nestas manhãs de domingo; ainda ontem era um pote de sonhos, mas parece que o pote caiu no chão. O curso acabou de pressa e para trás ficam as noites académicas, os jantares de curso, as cinco semanas académicas, cada uma mais gostosa que a outra, o sabor a ressaca em domingos como este. Para trás fica o primeiro beijo que deu em Gustavo, o girasso de engenharias que lhe andava a piscar o olho há já algum tempo. Diga-se que o primeiro beijo até nem foi grande coisa, no meio de uma discoteca qualquer, meio bêbedos os dois, zonzos e com a boca a saber a vinho, de tantos copos seguidos que tinham bebido no jantar de curso há umas horas, foram juntos para casa e depois de muito mel, de estarem já sem roupa, preparados, ou não, para as exigências que advêm do próximo passo, ela teve que ir vomitar e ele deixou-se dormir no entretanto. Contudo ela deitou-se a seu lado e no outro dia agradeceram (talvez cinicamente) o facto de nada ter acontecido, ficaram amigos e passados dois meses, já com conhecimento de facto, começaram a namorar, desta vez muito mais sóbrios.


Olha pela janela, distraída, pensa no quão miúda era ainda ontem, quando entrou para o seu estágio, numa grande empresa, onde ela era igual a tantas outras empregadas ou funcionárias e onde o curso de pouco ou nada lhe valia, autêntica carne para canhão, tratada de empurrão de corredor em corredor e as dúvidas todas que a assaltaram no momento. Decidiu ficar e por sorte um dia um esboço seu chegou às mãos da pessoa certa, não subiu muito na carreira de imediato, mas ganhou prestigio, ganhou certa autonomia e o direito a uma secretária só sua, onde faz sobretudo correcções a projectos dos senhores arquitectos, as caras da empresa, quem lhe ralha quando se atrasa e quem nada lhe diz quando não falha, os mesmos que na semana passada lhe deixaram um memorando na secretária, relembrando-a da grandiosidade daquela empresa, do seu ritmo competitivo, terminando com um sério aviso sobre a sua fraca produtividade nos últimos tempos e aconselhando-a a melhorar pois “esta é uma empresa da linha da frente, de campeões, feita por pessoas exigentes para pessoas exigentes, onde só os melhores têm lugar (…) “, por outras palavras a uma espécie de ultimado cheio de palavras caras.


Como é que eles querem que eu produza mais? Ando de rastos com a separação e o Gustavo não tem facilitado as coisas; não posso contar com a ajuda dos meus pais e a melhor amiga que tenho a Carla é a pessoa mais falsa do mundo… como, gostava que me dissessem como é que eu posso fazer mais…


Enquanto observa os pássaros que alimentam as choronas das duas crias nas copas das árvores mesmo por debaixo do seu parapeito lembra-se da última vez que falou com os seus pais já fazia uns praticamente três anos, mais coisa menos coisa, quando o pai tinha sido apanhado com outra mulher. Numa situação destas é difícil saber como se reagir. Ela deixou de falar ao pai; a mãe perdoou; ela considerou a mãe uma fraca; a mãe deixou de lhe falar; no meio disto tudo o seu único apoio foi o Gustavo. Teve que suportar as árduas provações do estágio, arranjar um part-time para ganhar algum para pagar a renda da casa que passou a dividir com o namorado pois com os pais sabia que não podia contar, nem queria.


Mas agora o cerco estava a apertar. Sem ninguém com quem dividir as contas, com a sua vida amorosa desfeita, com o emprego preso por um fio e com umas saudades de casa e da sua mãe (sobretudo) ela estava a dar em doida.


A noite passada tentou sair para se divertir. Arranjou o seu longo e volumoso cabelo encaracolado, colocou a sua lingerie preferida, vestiu o seu vestido preto, o que a mais a favorecia: justo ao seu rabo redondo e volumoso, ligeiramente decotado no peito sem revelar demasiado, delineado a curvatura do seu corpo, e deixando à mostra, para deslumbre de muitos homens, as suas longas e bronzeadas pernas, adornadas com uns saltos altos que lhe encaixavam na perfeição e que lhe fazia subir dos sessenta e picos para os setenta. Pintou os olhos verdes e claros com um preto forte à volta, maquilhou-se, quanto baste, um pouco de base um pouco de blush e colocou o seu perfume preferido: Touch Of Pink (Lacoste). Estava pronta para impressionar e ser a rainha da noite, mas, quando estava sentada no sofá de um bar lounge no centro da cidade, onde o pessoal da empresa se costuma encontrar, a conversar com um mero colega (que talvez pudesse vir a ser mais que isso, não por ela, mas mais por ele que se babava completamente para ela) eis que aparece um figurante. Uma personagem que já devia ter morrido umas cenas atrás mas que teimava em ressuscitar, qual Cristo, e aparecer novamente em cena: Gustavo.


Ele já tinha estragado tudo entre eles com as brigas, os ciúmes, os preconceitos, as invejas, a miséria do seu insucesso como pessoa inadaptada ao mundo adulto tinha dado cabo da relação deles. Era mais hábito que outra coisa qualquer, mas não era nada cómodo e como tal, Verónica, decide por ponto final à situação. Mas se antes discutiam sempre que se viam, agora não era diferente, bem, a única diferença era o facto de que antes tinham que se ver, agora não, mas ele insistia em persegui-la fosse onde fosse para lhe arruinar os planos, como se ainda tivessem alguma coisa.


A noite terminou cedo, inesperadamente, teve que o ameaçar dizendo que chamava a Policia para que ele não a perseguisse até casa, tentou evitar o escândalo no bar mas foi difícil disfarçar.


Boa, agora vão pensar que sou alguma galdéria que deixa o namorado em casa e vem sair para os bares toda aperaltada para engatar outros homens. Só me faltava esta, fama de vadia.


Levou a chávena mais uma vez à boca e reparou que já tinha bebido o leite todo enquanto se perdera nestes pensamentos. Decidiu que não podia ficar ali parada. Foi guardar o pacote de leite e reparou que não tinha muita coisa no frigorífico.


Boa, junta-se o útil ao agradável.


Decidiu que ia sair, dar uma volta de carro, parar na praia, olhar as ondas, beber um café, depois passar pelo supermercado e comprar o que lhe fizesse falta, almoçar uma coisa rápida e depois trabalhar nos projectos em atraso que tinha trazido para casa na sexta-feira.


Temos que começar por algum lado. Pensou ela enquanto dava à chave para por o carro a trabalhar. Dirigiu-se à saída do parque de estacionamento subterrâneo, subiu a rampa e fez stop. Não conseguiu ver nada para o lado esquerdo. Uma carrinha de entregas mal estacionada impedia-lhe ver para esse lado. Esgueirou-se um pouco para dentro da estrada para ver. Foi ai que viu. Um clarão branco muito intenso. Silêncio. Os pés frios. Escuro.


De pés descalços, era como seguia na maca para o bloco operatório. Vários traumatismos e uma hemorragia interna no tórax deram-lhe o estatuto de ferido grave nos noticiários. Voltou a abrir os olhos durante a azáfama do corredor das urgências, viu a cara de aflitos dos médicos, viu as luzes do tecto e depois não viu mais nada.


Mais nada, não conseguimos fazer mais nada, ela sofreu uma perfuração nos pulmões e nós não conseguimos fazer mais nada para a ajudar. Lamentamos.


Foi o que disse o médio que recebeu os pais no Hospital. Ela não viu mais nada. Não viu o carro em excesso de velocidade que seguia na sua direcção, onde seguia um jovem ao volante, pouco mais novo que ela, que só agora se ia deitar depois de uma noite de grande farra. Ela não viu e ele não a viu a ela. Ele não viu grande coisa depois da uma da manhã. Não viu que vinha um carro a sair; não viu que seguia em excesso de velocidade; não viu que não levava cinto de segurança; e já não terá visto o asfalto quando embateu de frente com este depois de ter sido cuspido pelo vidro da frente do carro. Ela também já não viu nada.


Não viu os seus pais chorar no corredor, não viu Gustavo a segurar-lhe a mão na maca de ambulância, não chegou a ver os seus filhos; a casa que queria construir; não chegou a escolher o cão que queria ter para passear em manhãs como esta; não chegou a ver a torre Eiffel de perto na viagem a paris que queria para lua-de-mel; não chegou a ver o rebentar das ondas magníficas que faziam nesse dia. A única coisa que viu foram recordações de infância, momentos de pés descalços, inocentes, onde se refugiou e encontrou o abrigo dos momentos mais felizes da sua vida.

3 comentários:

Daniela Ermitão disse...

Wow , como não podia deixar de ser , BRUTAAL . João , esta está mesmo linda . Adoro , tu já sabes o que penso disto +.+ A parte final dá um toque que é mesmo qualquer coisa de lindo . Beijinhos , adoro-te :D

. disse...

está lindo mesmo :´)
tens mesmo jeito.

Daniela Neves disse...

encontrei este blog por acaso, e amei completamente este post!
tens imenso jeito, parabéns :)